O preconceito, escondido em metáforas, palavras soltas ao acaso e piadinhas e risos cúmplices, na realidade, denuncia o quanto nossos padrões culturais e visões de mundo carregam tanto desconhecimento em relação às várias faces da África. Particularmente no Brasil, cuja influência africana em nosso cotidiano é tão perceptível, viva e fundante, passou e ainda passa por um embranquecimento, uma “limpeza étnica” para parecer mais palatável, mais aceitável e claro, mais comercial.
Um dos espaços de (re)produção dos discursos racistas, travestidos ou não, é a escola. Neste espaço, de uma forma ou de outra, as histórias, as religiões, a culinária, o conceito de beleza e de visões de mundo de negros e negras brasileiros tem sido sistematicamente resignificados.
E um dos momentos mais interessantes de se observar como a escola “vê” a questão racial são as comemorações da Semana da Consciência Negra. Quando elas acontecem (se acontecem) o preconceito inevitavelmente aparece, principalmente quando envolve a religiosidade, traço importante para conhecermos as Áfricas.
A crítica ao ensino da cultura africana que enfoque as suas religiões parte principalmente de professores e professoras conservadores e principalmente, evangélicos, em sua maioria, neopentecostais.
A Igreja Católica (ou melhor, os/as adeptos/as) tem historicamente uma relação (mesmo dúbia) de tolerância com o candomblé, umbanda, quibanda e outras manifestações religiosas de origem e/ou influência africana. As articulações, às vezes bastante imbricadas entre elas e o catolicismo, permitem diversas manifestações de fé. Católicos que fazem simpatias, que recorrem tanto às cartas como aos búzios e as novenas além de candomblecistas que se declaram como católicos/as não são raros de se encontrar.
Alias, é justamente o contrário. Eu mesmo sou pertencente a uma família de tradição católica que procurava cirurgias espirituais e leitoras de mão e de cartas no sábado e ia à missa ao domingo.
Mas com o crescimento exponencial de cristãos evangélicos nos últimos 30 anos essa história de relativa tolerância vem se modificando. Não são raros, portanto, os discursos de intolerância, preconceito e exclusão das manifestações da religiosidade africana nos espaços escolares.
Fica evidente então que uma numerosa e “barulhenta” parcela da população brasileira está mudando o modo de ver o mundo e principalmente, estabelecendo novos parâmetros de se relacionar com a diversidade cultural, traço marcante em nosso país. E confesso que eu estou preocupado com os rumos desse discurso, dessas ações, desse verdadeiro exército de Cristo.
Partem, evidentemente, de uma leitura da Bíblia, que é legítima como possibilidade da liberdade religiosa, direito tão importante para qualquer país que se diga democrático. E o direito à prática religiosa (ou a sua não-prática) é garantido constitucionalmente sendo um dos pilares das garantias individuais. Não é isso, portanto, que está em discussão, mas sim, o contrário; Uma expressão da fé que acaba por solapar, descaracterizar e subjugar uma outra. O “trator” evangélico não deixa de pé qualquer possibilidade de debate sobre religiosidade de matriz africana.
A informal tolerância não tem espaço entre parte significativa dos cristãos evangélicos. Algumas denominações, mais extremas, chegam a explicitar sobre o perigo da tolerância já que deus não é tolerante e incitam a não tolerar o que não venha de Deus, já que tolerar é compactuar. Quem não tolera, extermina, não é Hitler?
Por ser “coisa do demônio”, as cosmologias e cosmogonias africanas são simplesmente ignoradas. Búzios, terreiro, exús, oferendas, orixás, caboclos, guias, atabaques, o povo de santo, enfim, tudo que se relaciona com as religiões africanas vira macumba, coisa ruim ou pecado que portanto deve ser denunciado e principalmente, combatido.
As escolas funcionam como uma caixa de ressonância que gera e amplifica esses discursos vindos de todos os lados, desde a mãe do aluno ou aluna, como também da servidora, do porteiro, da professora ou professor, de membros da equipe gestora de “parceiros da escola”.
E essa visão de mundo, claro, vai influenciar nas escolhas dos currículos (sejam eles ocultos ou oficiais), nas várias avaliações (desde problemas de aprendizagem e comportamentais relacionados com possessões demoníacas), nas relações interpessoais, na hora da entrada dos alunos e alunas. A proximidade ou distância de deus irá determinar o sucesso ou o fracasso escolar, a estrutura (ou a falta dela) das famílias, as oportunidades e os obstáculos presentes no dia-a-dia da escola e fora dela.
A obrigatoriedade do ensino da história africana no Brasil, se por um lado é amplamente ignorado nas escolas, por outro, a história dos povos africanos é reduzido à escravidão. Pouco se fala da resistência e dos heróis e heroínas negros em sua luta pelo fim da escravidão e pela sua emancipação. A princesa Isabel continua sendo vista como a redentora, a valorosa, a mais humana na corte do Imperador.
Evidentemente que muitas ações vêm sendo desenvolvidas para que esse quadro se reverta. Cursos, debates, conferência e o diálogo são importantes para a formação de professores e professoras. Tanto as políticas públicas como as iniciativas populares vão possibilitando um maior número de pessoas, a conhecer as nuances da história de africanos e africanas no Brasil. Mas o discurso conservador, fundamentalista e religiosos reage numa rapidez muito maior que nossa capacidade de articulação.
Talvez seja por isso que vejo a necessidade de criarmos uma rede nacional de educadores e educadoras pela igualdade a fim de compartilharmos experiências, refletirmos coletivamente assim organizar a contraposição ao discurso dos/das intolerantes.
Se a escola é campo de disputa hegemônica, por ser um espaço privilegiado de formação humana, por ser tanto um aparelho ideológico do Estado como por carregar em sua própria constituição a capacidade de transformação, cabe aos educadores e educadoras pela diversidade a também definir um discurso, tão poderoso quanto o outro.
A história da humanidade está repleta de exemplos de visões explícitas de ódio. O genocídio, o etnocídio, a ideia de uma cultura ou visão de mundo superior a outra e os vários tipos de apartheid. A tolerância é fundamental, importante e expoente de uma atitude de respeito. E as práticas educacionais advindas do discurso de tolerância e respeito ao diferente são mais do que bem-vindas; são essenciais.